12 Mulheres e uma cadela

20 anos depois As Apaixonadas voltam para apresentar, um espectáculo inovador, proposto por São José Lapa, Lucinda Loureiro e Ãngela Pinto, convidando para junto delas a escritora Inês Pedrosa. Voltam com 12 Mulheres e uma cadela, para falar do conceito de Mãe, de Mulher. 12 mulheres únicas. Carmen Santos, São José Lapa, Paula Guedes, Lucinda Loureiro, Ângela Pinto, Alexandra Leite, Jo Bernardo, Gracinda Nave, Alexandra Freudenthal, Inês Lapa Lopes, Rita Rodrigues, Joana Manaças.

12.15.2004

12 Mulheres e uma cadela

12 Mulheres e uma cadela


Rita Jordão Silva
No primeiro dia de aulas, quando a professora pediu aos alunos para se apresentarem, Joanne levantou-se e disse: "Olá o meu nome é Joanne e não sou rapaz nem rapariga, sou intersexuada." A reacção da professora foi a mesma que quase todas as pessoas teriam se ouvissem esta frase da boca de uma criança de cinco anos. As causas? "Desconhecimento sobre o assunto", explica Alan, pai de Joanne. Vivemos numa sociedade que só aceita duas condições sexuais - feminina ou masculina - no entanto, segundo a Intersexed Society dos Estados Unidos da América (EUA), em cada duas mil crianças que nascem, uma tem ambos os sexos e, apenas no Reino Unido, estima-se que existam cem mil indivíduos intersexuados.
Joanne, agora com 17 anos, tem a aparência externa de uma rapariga, sente-se feminina e comporta-se como tal. O seu corpo, no entanto, divide-se. Tem todas as características externas de uma mulher, mas, em vez de ovários tem testículos e não possui útero. "Eu identifico-me mais como feminina do que masculina, mas a realidade é que sou metade-metade", explica.
O caso de Joanne não é dos mais graves, a sua intersexualidade é apenas interna, o que facilita a aceitação pessoal e social. Nada a impede de mostrar o seu corpo, de tomar banho com as colegas de turma após uma aula de ginástica, ou de vestir um biquini na praia. Namorados também não são problema: "Se algum homem me rejeitar pela minha condição, é porque não é o homem certo para mim e não é com ele que eu quero estar", afirma confiante. Mais difícil é aceitar a impossibilidade de ter filhos, mas, mentalizada, Joanne já pensou na solução: adoptar.
Até há bem pouco tempo, a tendência era para operar estes casos logo à nascença, retirando parte dos órgãos sexuais para que a criança ficasse apenas com um dos sexos. Os médicos acreditavam que resolvendo o problema físico estariam a "curar" a criança. Recentemente, novas investigações têm vindo a mostrar que tal não passa de um mito e, apesar de ainda se recorrer muito à cirurgia, existe a consciência de que optar por um dos sexos pode ser perigoso, uma vez que, ao crescer, a criança pode vir a identificar-se com o sexo que lhe foi retirado.
Quando Joanne nasceu, os médicos não hesitaram em enviá-la para a sala de operações para lhe retirarem os testículos, mas Alan e Nancy decidiram não operar e deixar a decisão para a sua filha. Até hoje, Joanne ainda não fez qualquer cirurgia, mas admite que "se tivesse sinais externos já o teria feito".
Ao contrário de Joanne, Patrick nasceu num corpo com o qual não se identifica. Tem 11 anos e, apesar de fisicamente ser uma rapariga, veste-se como um rapaz, age como um rapaz e apresenta-se como Patrick. Quando, aos quatro anos, começou a negar a sua sexualidade, os seus pais pensaram que se tratava apenas de mais uma "maria-rapaz" e que seria uma fase passageira. No entanto, a situação foi-se agravando e o grande aviso surgiu quando Patrick ameaçou suicidar-se se os pais não o deixassem transformar o seu corpo. Foi nessa altura que resolveram consultar um psiquiatra e aceitar que o seu filho recebesse tratamento para impedir o seu desenvolvimento sexual como rapariga.
"Começámos a ver o problema quando ele começou a não querer ir para a escola. Ele simplesmente negava a sua condição física e explicava que era um rapaz preso num corpo de rapariga", recorda a mãe que só agora se habituou a referir-se a Patrick como "ele". O sonho de ver a sua filha crescer e quem sabe um dia casar e ter filhos caiu por água, mas, para os pais de Patrick, "é melhor ter um filho do que ter apenas um álbum de fotografias para recordar uma filha que partiu".
O problema tem tido as atenções do Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido e dezenas de jovens entre os 14 e os 18 anos estão a receber tratamento em clínicas britânicas. "Há dois tipos de situações diferentes. Algumas crianças têm os dois sexos no mesmo corpo e outras vivem num corpo que não corresponde à sua sexualidade psicológica", explica Russell Reid, médico psiquiatra especializado em problemas de sexualidade. Os tratamentos são diferentes para os dois casos. No primeiro, é necessário escolher um dos sexos, cada caso é estudado individualmente e a escolha é baseada nas características físicas e psicológicas de cada paciente. A criança é sujeita a diversos e extensos testes físicos, genéticos e psicológicos, para determinar o sexo mais apropriado. Depois os órgãos "errados" são retirados ou reparados. "Normalmente, este processo é realizado em idades muito precoces para evitar traumas. Depois, a criança é acompanhada durante a puberdade", explica Russell Reid.
Apesar de a intersexualidade ser há muito vista como um problema clínico, os tratamentos aplicados estão longe de reunir consenso. Tal como os pais de Joanne, Deborah Brown, directora do Intersex Support Group International, defende que os tratamentos em crianças muito jovens mudam o destino da pessoa. "Deve-se esperar e ver o que a criança sente, o sexo com o qual ela se identifica e, nessa altura, tomar uma decisão em conjunto com a criança", explica. A justificação baseia-se numa experiência realizada nos Estados Unidos da América durante os anos sessenta. Um de dois gémeos nasceu com o órgão sexual deformado. Depois de vários testes, os médicos decidiram operar a criança transformando-a numa rapariga. Ao crescer, a jovem foi começando a sentir-se desintegrada e acabou por optar por mudar de sexo - regressando ao original. Esta história terminou tragicamente com o suicídio do paciente. Para Deborah Brown as crianças intersexuadas têm fisicamente os dois sexos, no entanto, psicologicamente só pode haver um.
Só há bem pouco tempo é que a transexualidade começou a ser vista como um problema clínico. Hoje em dia, no Reino Unido, as crianças transexuais já têm apoio escolar e muitas vezes podem mesmo mudar o seu primeiro nome e utilizar o uniforme desenhado para o sexo oposto, ao mesmo tempo que recebem tratamentos hospitalares para travar o seu desenvolvimento sexual durante a puberdade. Este tipo de tratamento começou a ser realizado em clínicas do Sistema Nacional de Saúde há cerca de dez anos. "Numa fase seguinte, estas crianças recebem hormonas para desenvolverem características do sexo pelo qual optaram", explica Russell Reid. O último passo, tomado quando a criança atinge os 18 anos, é uma série de operações para criar os órgãos sexuais externos. "Quando a opção de operar é tomada, o paciente terá ainda que fazer um teste de "vida real". Durante um ano, a pessoa terá que provar que consegue viver, trabalhar com o sexo para o qual pretende mudar.
O problema tem suscitado o debate entre os especialistas e associações de famílias. Para Russell Reid, estes tratamentos deveriam começar ainda mais cedo. "Há casos de crianças que, aos seis ou sete anos, já têm a certeza da sua sexualidade, quanto mais cedo estes tratamentos começarem, menos a criança vai sofrer, física, psicológica e socialmente", explica. No entanto, há argumentos contrários dentro e fora da classe médica. Para a UK Parents - associação que visa apoiar, proteger e aconselhar as famílias - aos 14 anos as crianças "ainda não atingiram a maturidade sexual e uma fase passageira pode alterar e até arruinar as suas vidas para sempre". Como diversos profissionais de saúde, a associação defende que, qualquer que seja o tratamento, ele só deve ser feito quando o paciente completa os 18 anos. Domenico Di Ceglie, médico psiquiatra especializado no tratamento de crianças transexuais, é um defensor da liberdade de expressão e de escolha das crianças. No entanto, ele próprio admite que uma em cada quatro crianças que, aos 14 anos, parecem convencidas da sua vontade de mudar de sexo acaba por mudar de ideias. "Nestas idades as crianças não podem estar completamente convencidas. No entanto, há uma pressão para intervir, porque estas crianças estão perdidas e precisam de ajuda para ultrapassar o seu problema", afirma.
Casos como os de Joanne ou Patrick são bastante mais frequentes do que qualquer pessoa poderá imaginar. Mas enquanto o problema da intersexualidade não é uma novidade clínica, o número crescente de crianças a quererem mudar de sexo levanta a questão: porquê? Causas sociológicas, físicas, o fim da família tradicional ou uma maior liberdade de expressão são apenas alguns dos motivos apontados. Mas a questão fundamental, que ainda não está esclarecida, é se até agora a vergonha, preconceitos ou sociedades tradicionais calaram milhares de crianças que nunca se sentiram bem no sexo com o qual nasceram ou se ser criança hoje em dia já não é o mesmo do que no tempo em que a única preocupação de uma criança de sete anos era brincar.

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